Eletrocardiograma (ECG): como funciona, para que serve e o que identifica?

|25 de junho de 2025|Categoria: Medicina|9 min de leitura|
Paciente realizando eletrocardiograma ecg

É curioso como um monte de linhas rabiscadas num papel ou numa tela consegue contar tanta coisa sobre o coração. Para muita gente, o eletrocardiograma — ou ECG, como chamam os profissionais de saúde — ainda parece um exame enigmático, quase uma escrita secreta para iniciados na medicina. Mas o que parece confuso à primeira vista é, na verdade, uma leitura sofisticada do funcionamento elétrico do coração. Sim, o coração, além de músculo, também é um sistema elétrico — e entender esse sistema pode salvar vidas.

A base do ECG é simples: ele registra a atividade elétrica que comanda as contrações do coração. Cada batida começa com um sinal elétrico gerado em uma estrutura chamada nódulo sinoatrial (o marca passo natural cardíaco), percorre vias específicas e desencadeia a contração organizada dos átrios e ventrículos. Quando há algo fora do lugar — uma arritmia, uma isquemia, uma sobrecarga — esse padrão elétrico muda. E é aí que o ECG entra como uma ferramenta de diagnóstico poderosa, rápida e não invasiva.

Apesar disso, interpretar um eletrocardiograma com precisão exige treino. Não basta olhar a forma das ondas — é preciso entender a sequência, os intervalos, as relações entre os traçados. É quase como aprender um novo idioma. E mais: o ECG não serve apenas para detectar infartos. Ele pode indicar distúrbios eletrolíticos, intoxicações, alterações estruturais e até problemas pulmonares. Ou seja, é um exame de rastreio muito mais abrangente do que se imagina.

Mas vamos com calma. Em vez de tentar decifrar tudo de uma vez, vale a pena quebrar o assunto em partes. Vamos explorar, de forma técnica mas conversada, o que compõe um eletrocardiograma, como ele é feito, o que significam aquelas letrinhas (P, QRS, T…) e, claro, por que esse exame continua sendo um dos pilares da avaliação cardiológica.

 

Componentes do traçado eletrocardiográfico

O eletrocardiograma é um gráfico que representa o caminho dos impulsos elétricos através do coração. O traçado é composto por ondas e segmentos que, juntos, formam um ciclo cardíaco completo.

A primeira onda que aparece é a onda P, que corresponde à despolarização dos átrios — ou seja, a propagação nos átrios do estímulo elétrico gerado no nódulo sinoatrial. Se ela estiver ausente, achatada, invertida ou duplicada, já pode indicar arritmias atriais ou bloqueios de condução.

Depois da onda P, vem o segmento PR, que mostra o tempo entre o final da despolarização atrial e a chegada do estímulo aos ventrículos. Esse trecho é fundamental porque o nó AV funciona como um “filtro natural” da condução elétrica: ele atrasa um pouquinho o sinal justamente para dar tempo aos átrios de esvaziar o sangue nos ventrículos antes que eles comecem a se contrair.

Um segmento PR muito curto pode indicar que o impulso elétrico está “furando a fila”, ou seja, passando por uma rota alternativa que dribla o atraso natural do nó AV. É o que acontece, por exemplo, na síndrome de Wolff-Parkinson-White (WPW), uma condição em que existe uma via acessória de condução elétrica no coração.

Além do encurtamento, o segmento PR também pode sofrer alterações no traçado da linha de base, ficando mais alto ou mais baixo. Isso é observado, por exemplo, em casos de pericardite aguda, onde o segmento pode ficar discretamente rebaixado.

Agora, quando falamos em intervalo PR, estamos considerando uma parte maior do traçado: vai desde o início da onda P até o início do complexo QRS. Ele inclui tanto o tempo de despolarização atrial quanto a passagem pelo nó AV e os feixes de condução.

Se o intervalo PR estiver prolongado (ou seja, mais longo do que o normal), isso pode indicar um atraso na condução entre os átrios e os ventrículos — os famosos bloqueios atrioventriculares.

Em seguida, aparece o complexo QRS, que representa a despolarização dos ventrículos. É o mais fácil de identificar no traçado — aquele pico agudo e rápido que chama atenção. O tempo e o formato do QRS indicam se a condução ventricular está normal. Complexos alargados, bifásicos ou com morfologia alterada podem sugerir bloqueios de ramo, sobrecargas ou até focos ectópicos.

Logo depois vem a onda T, que marca a repolarização ventricular — o momento em que os ventrículos se preparam para o próximo batimento. Embora pareça um detalhe discreto, alterações na onda T são sinal de alerta: inversões, achatamentos ou elevações podem indicar isquemia, distúrbios eletrolíticos ou até efeitos colaterais de medicamentos.

E, por fim, temos o intervalo QT, que mede o tempo total entre o início da despolarização até o fim da repolarização ventricular. Um QT prolongado é mais do que um detalhe de traçado… é um fator de risco real para arritmias graves, incluindo as temidas taquiarritmias ventriculares.

 

Derivações do ECG

O ECG padrão utiliza 12 derivações, ou seja, 12 “visões” diferentes do coração. Cada uma capta a atividade elétrica de uma perspectiva específica, como se fossem câmeras posicionadas ao redor do órgão. Já as derivações aVR, aVL e aVF, conhecidas como unipolares aumentadas, e as seis últimas (V1 a V6, chamadas de precordiais), mostram os vetores elétricos do coração em relação a um “ponto neutro”. Esse ponto neutro não é um lugar físico no corpo, mas sim um ponto elétrico virtual, criado a partir da combinação dos sinais dos outros eletrodos — é o chamado Terminal Central de Wilson.

Essa variedade de ângulos permite localizar onde exatamente ocorre uma anormalidade. Por exemplo: alterações nas derivações II, III e aVF sugerem problemas na parede inferior do coração; V1 e V2 focam na parede septal; V5 e V6, na lateral esquerda. Isso é essencial para diagnosticar infartos e diferenciar suas localizações anatômicas.

Além disso, cada derivação tem suas próprias “normas” de aparência. Uma onda T negativa pode ser normal em V1, mas não em V5. Um QRS alargado pode ter significados diferentes dependendo da derivação em que aparece. Por isso, interpretar um ECG exige entender cada uma dessas câmeras — e o que é esperado em cada “cena”.

E tem mais: a inversão de eletrodos ou a má colocação das derivações precordiais pode alterar significativamente o traçado. Parece bobeira, mas um eletrocardiograma mal feito pode simular patologias que não existem. Por isso, a técnica correta na execução do exame é tão importante quanto a leitura.

 

Alterações comuns

Quando se fala em alterações no ECG, o primeiro pensamento costuma ser o infarto agudo do miocárdio. E, de fato, ele deixa marcas muito características no traçado — como elevação do segmento ST, ondas T hiperagudas ou inversões em padrão específico.

Mas o ECG vai além disso. Um bom exemplo são as arritmias, que podem ser detectadas pela análise da regularidade dos complexos QRS e da relação deles com as ondas P.

A fibrilação atrial, por exemplo, se mostra como ausência de ondas P organizadas e um ritmo irregularmente irregular. Já o flutter atrial exibe ondas “em serrilha” em padrão regular, geralmente com uma taxa atrial muito alta. As taquicardias supraventriculares têm QRS estreito e ritmo acelerado, enquanto as taquicardias ventriculares,  mais perigosas, apresentam QRS alargado.

Além das arritmias, o ECG revela bloqueios de condução — como o bloqueio de ramo direito ou esquerdo — que se apresentam por alterações na duração e morfologia do QRS. O bloqueio atrioventricular de primeiro, segundo ou terceiro grau afeta o intervalo PR e a sequência das ondas. E mais: sobrecargas atriais e ventriculares podem ser percebidas pelo aumento na amplitude de determinadas ondas, sugerindo hipertrofias.

Também é possível detectar alterações eletrolíticas, como hipocalemia (onda U proeminente, achatamento da onda T), hipercalemia (ondas T apiculadas, QRS alargado), hipocalcemia (prolongamento do QT) e outras. Intoxicações medicamentosas — como por digoxina — também deixam padrões específicos. Em resumo: o ECG é como uma lupa para quase tudo que mexe com o coração.

 

Indicações clínicas do ECG

Apesar de ser um exame simples, o eletrocardiograma é indicado em uma ampla gama de situações clínicas. Na urgência, é peça-chave na avaliação de dor torácica — para descartar infarto, pericardite ou embolia pulmonar. É também essencial em casos de síncope, palpitações, desmaios ou suspeita de arritmias. Na avaliação de dispneia aguda, pode ajudar a identificar sobrecarga do coração direito, como em casos de tromboembolismo pulmonar.

No contexto ambulatorial, o ECG serve para rastrear doenças cardíacas em pacientes assintomáticos, principalmente se houver fatores de risco como hipertensão, diabetes, dislipidemia ou histórico familiar. Também é usado para acompanhar pacientes em uso de medicações que afetam a condução cardíaca — como antidepressivos tricíclicos, antipsicóticos, quimioterápicos e alguns antibióticos.

Outro uso importante é na avaliação pré-operatória. Antes de cirurgias de médio e grande porte, o ECG pode detectar alterações silenciosas que mudam a conduta anestésica. E, claro, é rotina em check-ups cardiológicos, prática esportiva e avaliações ocupacionais. Simples, rápido e com imenso poder de triagem.

Por fim, em pacientes com doenças crônicas — como insuficiência cardíaca, DPOC ou doença renal crônica — o ECG ajuda a monitorar possíveis repercussões cardíacas secundárias. É quase como um diário elétrico do coração, pronto para ser consultado sempre que necessário.

 

Limitações e interpretações errôneas

Apesar de sua utilidade, o eletrocardiograma tem limitações. Ele registra um pequeno intervalo da atividade elétrica cardíaca — uma fotografia de poucos segundos. Se uma arritmia for intermitente, por exemplo, pode não aparecer no traçado. É por isso que exames como o Holter 24h ou o loop recorder são indicados quando se suspeita de alterações que “vão e vêm”.

Além disso, a interpretação depende de contexto. Um ECG pode parecer “normal”, mas esconder alterações importantes que só aparecem sob estresse — daí a importância do teste ergométrico ou do ECG de esforço. Também há condições em que o traçado parece patológico, mas é uma variação normal (como a repolarização precoce em jovens atletas).

Outro ponto crítico é a experiência do leitor. Leigos podem se assustar com uma pequena inversão de onda T, enquanto profissionais experientes podem reconhecer padrões sutis com implicações profundas. E há ainda os falsos positivos e falsos negativos, comuns em exames mal realizados ou mal interpretados.

O ECG é poderoso, mas não é infalível. Deve ser lido em conjunto com sintomas, história clínica, exames físicos e, se necessário, outros exames complementares — como ecocardiograma, enzimas cardíacas e estudos eletrofisiológicos.

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